Arte e(m) revolta – Por Rafael Pinheiro

Há alguns anos, enquanto navegava pela plataforma de vídeos YouTube, encontrei uma entrevista em que a artista multimídia Linn da Quebrada comentava sobre o seu processo de criação musical, e os desdobramentos que as suas produções ressoavam em temas atuais, como o próprio corpo dissidente da artista e a sua potencialidade política nessa dissidência. Em um dado momento da entrevista, questionada “O que te move?”, a artista prontamente responde: “O que me move é a raiva. Eu acho que a raiva e a violência são motores fundamentais na minha criação e que me impulsionam para outros lugares”. Esse trecho da entrevista, em especial, colou em meus pensamentos instantaneamente. E não só pelas palavras, mas também pela maneira como elas foram enunciadas. De pernas cruzadas e com roupas escuras em um cenário totalmente preto, iluminada pela única luz presente no vídeo da entrevista. Quando diz “O que me move é a raiva”, seu olhar é penetrante, quase sem piscar, encarando o seu entrevistador, como se essa raiva, à qual ela se refere, estivesse materializada em sua expressão, em suas células, em seu corpo. Como se a raiva também fosse atravessada por aquele corpo.

Durante algum tempo, ainda com as falas da artista em mente, tentei elaborar – ou até mesmo aproximar – esse motor criativo de raiva aos trabalhos de Linn da Quebrada. A conotação de raiva, como um substantivo feminino, pode ser interpretada como um sentimento de irritação, uma expressão de fúria, de agressividade ou até uma repulsa. De forma geral, utilizamos a raiva como algo negativo, um sentimento que pode ocorrer com qualquer pessoa em qualquer momento do dia a dia. Mas, seguindo o trajeto criativo de Linn da Quebrada, como ressignificar essa raiva em uma potência artística? Como transformar esse sentimento em um impulso para adentrar outras vivências? E a qual espaço essa arte e(m) revolta – ou essa arte movida pela raiva – pode chegar? Para responder a essas perguntas, recorro a duas imagens de um show da artista que fotografei durante um trabalho de campo.


Foto 1: Linn da Quebrada aponta para o público no refrão da música “Bixa Preta”. (Rafael Pinheiro/2019)

A imagem acima foi capturada durante um show da artista no teatro do SESC Santo Amaro, em 25 de outubro de 2019. O momento da imagem é o refrão de Bixa Preta – um dos primeiros singles da artista, lançado em 2017. No refrão, ela canta: Bixa pretrá, trá, trá, trá (4x) / a minha pele preta, é meu manto de coragem / impulsiona o movimento / envaidece a viadagem / vai desce, desce, desce / desce a viadagem. Durante a performance dessa música, a artista aponta os dedos para a plateia fazendo alusão a uma arma – já que, no trecho trá, trá, trá, ecoa pelo palco um som estridente de metralhadora. A expressão – tanto facial como corporal – nesse momento do show é explícita e enfática: sua raiva está ali, materializada, apontada para todas, todes e todos. Mas essa expressão não é contra o seu público em si – pelo contrário! A relação/interação entre a artista e a plateia é intensa, e muito afetiva. A questão que me apareceu, assistindo a esse show à época, foi a de tentar compreender o que “impulsiona esse movimento” – o que aquele momento de expressão de fúria tinha a nos dizer e, também, o que poderia surgir para além dessa revolta.

Foto 2: Refrão da música “Bixa Preta”.                                       (Rafael Pinheiro/2019)

Bixa Preta é, de certa forma, um dos fragmentos biográficos da artista. Ao longo de toda a música, ela assume os seus marcadores sociais da diferença (como gênero, raça, sexualidade, classe, etc.) e, para além dessa autonomeação de “bixa preta”, há a proclamação de uma revolta – e isso fica evidente no início da música: bixa estranha, louca, preta, da favela / quando ela tá passando todos riem da cara dela / mas, se liga macho / presta muita atenção / senta e observa a tua destruição / que eu sou uma bixa, louca, preta, favelada / quicando eu vou passar e ninguém mais vai dar risada / se tu for esperto, pode logo perceber / que eu já não tô pra brincadeira / eu vou botar é pra foder. É interessante perceber que a artista faz um duplo movimento: ao mesmo tempo em que ela se autointitula “bixa preta”, reconhecendo os seus marcadores sociais que produzem desigualdades, LGBTfobia, machismo, racismo e segregação de classe, ela reelabora esses mecanismos estruturantes de um sistema social  – ou como algumas pesquisadoras chamam de “cistema” ou de “cisheteronormatividade”, ressaltando a cisgeneridade e a heteronormatividade como normas fundantes dos sujeitos – desestabilizando normas e causando fissuras nos ciclos de produções de corpos “normais” ou “anormais”. Ou seja, ela utiliza suas marcações abjetas e todos os seus sintomas, usa a raiva como motor criativo, aponta e proclama: senta e observa a tua destruição.

Se retornarmos à entrevista que menciono no início desta breve reflexão, é possível notar alguns caminhos utilizados pela artista para usar a raiva como componente de sua criação. “A raiva me impulsiona a criar estratégias, outras estratégias, de me manter viva. Qual é o poder que tem uma canção? Qual a força que tem uma canção?”. Partindo da ideia de que as produções de Linn da Quebrada transbordam e transitam em corpos que emergem com experiências dissidentes, e que, para além da raiva a um sistema (branco, cisgênero, heterossexual, de classe média e cristão), que marca, agride e violenta esses corpos diariamente, há uma imaginação-criativa-artística focada em destruir padrões homogêneos, em construir fissuras, em imaginar outras possibilidades de vida, de performances corporais, de desejos e afetos. A canção de Linn da Quebrada se apresenta em constante movimento, em trânsito e em transformação. Como um feitiço, uma maldição ou uma oração, as produções da artista reverberam seus anseios em ser muitas e em múltiplas identidades. Um grito resistente de estar e se manter viva. Por meio das falas da entrevista, da expressão nas imagens e da experiência no show, a raiva – como um motor de criação – impulsiona a artista (e todes/todas/todos que acompanham o seu trabalho) a espaços de construções e destruições; fluidez e tensionamento; correnteza e maré; vida e(m) arte. 

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