Monte Azul
Dizem que somos pessoas formadas, compostas, moldadas pelas pessoas que passam pelas nossas vidas, pelas relações que estabelecemos, pelos lugares que visitamos/conhecemos. Mas pouco se fala da força do lugar onde crescemos, esse espaço que habita em nós e insiste em cavar espaço nas nossas funduras mais desconhecidas para tudo isso que virá depois, ao longo da trajetória, como se fosse também uma pessoa com a qual estabelecemos uma relação, um sujeito da/na nossa história. Essa personagem na minha vida é o Monte Azul, bairro que vi se transformar ao longo dos anos tanto quanto me viu crescer, desenvolver e me compõem de um jeito que é difícil definir, explicar. Mas está lá, sempre me lembrando de quem fui, quem sonhei ser, no que tenho conseguido me tornar e às vezes isso é dolorido pra caramba, mas às vezes é lindo demais também.
Essa terra acolheu muitas pessoas migrantes em busca de melhora de vida, como minha avó Carmelita e a querida dona Tereza. Embora não tenham estabelecido vínculos entre si, são duas mulheres com trajetórias muito mais semelhantes do que talvez parecesse a um observador distanciado que as conhecesse em pleno 2021. Não sou a única conexão que se pode estabelecer entre elas. Ambas decidiram deixar suas cidades no início de suas vidas adultas, aos 20 e poucos anos, tendo a São Paulo do final da década de 1960 como destino. Seus companheiros chegaram antes na tentativa de se estabelecerem minimamente de maneira a acolher as famílias que se iniciavam naquele momento. Tempos depois cada uma delas percorreu quilômetros e mais quilômetros em ônibus interestaduais até desembarcarem na cidade onde construiriam suas vidas, alimentariam sua prole, se aposentariam, veriam tanta coisa acontecer bem diante de seus olhos retirantes.
Terras paraibanas e mineiras lhes deram a força e a coragem de nunca desistirem. Ainda hoje Alagoa Grande é parada nas andanças de minha avó. Dona Tereza, embora tenha voltado poucas vezes em seu Rio de Piracicaba, mantém contato com familiares. Entre idas e vindas, chão batido de terra, água no poço, ajuda de vizinhos e amigos, fizeram do Jardim Monte Azul o seu lar. Cuidadoras, uma ganhou a vida lavando, passando, limpando e servindo café entre casas e empresas, a outra fez sua vida vendo muita criança chorar, cair, se alimentar, ajudando-as a crescerem saudáveis, assistidas por organizações não governamentais. A ambas olho com muita admiração e carinho por serem quem são para além de terem zelado por mim quando pequena: com suas próprias mãos, guiadas pelos seus corações, levantaram cada tijolo real ou simbólico que fizeram suas moradas.
Resgatar memórias nem sempre é fácil, nem sempre é tranquilo. Em tempos pandêmicos a dificuldade aumenta. Dialogar com duas senhoras que fazem parte do grupo de risco moradoras de um bairro periférico exige malabarismos, desses que elas fizeram ao longo das décadas para sobreviverem com dignidade em uma terra que não era seu chão de nascença, mas sempre foi tão árido quanto. Entre tecnologias-imagem congelada-ruído ao fundo-não consigo mexer nisso minha filha-máscaras sobrepostas-álcool em gel-quer um café? e muitos silêncios-momentos de voz embargada-lágrimas contidas foi possível encurtar distâncias e reconstruir lembranças perdidas no meio das poucas fotos que lhes restaram. A caixa cor de vinho que guardou algum presente para uma data importante e a bolsa térmica que resguardou muito alimento comprado com as economias familiares permitiram que imagens virassem risadas e estas me reconectassem com Carmelita e Tereza e elas me lembrassem da importância das pessoas e dos lugares que nos atravessam.
Foi ali, no lugar onde elas construíram seus impérios, que tive uma educação lúdica e artística que toda criança e adolescente deveria ter o direito de acessar, foi onde sempre tive contato com a hoje tão aclamada “diversidade”, pessoas, culturas, famílias, músicas, danças, movimentos sociais, abraços. Um lugar de luta, de força, de horizontes possíveis. Um Monte hoje em dia nem tão mais Azul assim que acolheu e fez vingar famílias erguidas pelas mãos de mulheres migrantes que seguem pedindo proteção aos seus.
Créditos:
Foto Monte Azul e retrato 3×4 Dona Tereza: acervo Dona Tereza
Foto 3×4 Carmelita e foto de fundo na montagem Carmelita: acervo Carmelita
Foto de fundo na montagem Dona Tereza: acervo Dayane Fernandes
Retratos atuais Carmelita e Dona Tereza: Dayane Fernandes
Bordado: Dayane Fernandes
*Dayane Fernandes é mestra em Ciências Sociais pela Unifesp, participa do Grupo de Pesquisas Visuais e Urbanas (VISURB) e do Coletivo Estudos do Corpocidade (Cóccix). Contato: fernandes.dayane@gmail.com