Fotografias em combustão: sobre cafés, imagens e cigarros — Por Rodrigo Baroni

Eu parei de fumar… ou ao menos estou tentando. De qualquer modo sempre vi no cigarro algo de imagético. Difícil de explicar. Talvez as raízes desse pensamento estejam no caráter fugaz da queima concebida enquanto um instante em que, num estalido, algo se incendeia. Ou ainda, no fato de ser um objeto reproduzido em série, o que lhe confere, tal como no caso das fotografias, o sabor vertiginoso dos déjà-vus cotidianos.  Tal é o “paradoxo” do cigarro e das fotografias: ambos transformam a experiência dos instantes fugazes em algo que pode ser consumido repetidas vezes. Exagero meu? Talvez… além disso, ainda restam outras associações que fazem parte de meu imaginário: os cigarros iluminados à contraluz nos filmes franceses de que gosto, os das mesas esfumaçadas de sobre cafés e cigarros de Jim Jarmusch, ou aqueles presentes nos cinzeiros e nas mãos dos escritores frente à seus instrumentos de trabalho. Há também as imagens que saem das penas dos poetas em espirais de fumaça. Tal como aquela que certa vez inspirou e expirou Mellarmé em alguns versos traduzidos por Augusto de Campos os quais guardo na memória:

“Atesta qualquer cigarro
Queimado sábio por pouco
Que uma cinza se separe
De um claro beijo de fogo”

Mellarmé descreve magistralmente, talvez poderíamos dizer que ele captura o “momento decisivo” em que uma imagem se produz: o beijo, união entre dois corpos, é transfigurado no encontro do fumante com seu objeto de desejo. Deste movimento incendiário resta algo: tanto as cinzas quanto as imagens são produtos de uma combustão. 

Por isso, quando fui instigado a produzir uma “transcriação” inspirada por um dos contos presentes no livro Diante da Sombra (2018) de Ronaldo Entler, foi justamente “Sault Ste. Marie” que me saltou aos olhos. Não pude deixar de criar um laço de identificação com o personagem o qual passa horas encarando uma folhinha de calendário e que usa o cigarro como desculpa para ali permanecer por mais tempo. Eu também usava do tabagismo como desculpa para observar as imagens que se apresentavam diante de mim em minha varanda no centro de São Paulo, para olhar um pouco mais adiante em uma paisagem, ao mesmo tempo, estranhamente familiar e familiarmente estranha, embora o personagem que eu sou, ao contrário do personagem do conto, nunca tenha largado tudo para perseguir imagens e aquilo que elas anunciam e escondem.

De todo modo, no conto tal perseguição é espúria e a crueza da realidade não é capaz de cumprir as expectativas e promessas geradas pela imagem. Poderíamos até mesmo brincar de nos perguntar quem é de fato o protagonista da história, se é aquele homem simples que larga tudo em busca de um desejo, ou se é a imagem da folhinha de calendário que, como o canto das sereias, seduz e encanta o viajante o atraindo para uma armadilha sem volta. Feitiço ou fetiche, o personagem fatalmente se vê frustrado e, em um gesto, enrola a imagem em uma pedra e a atira em direção à paisagem, esperando, quem sabe, se ver livre dela, ou ainda como numa última esperança de reintegrá-la à suas origens.

Decidi, então, imitar esse gesto realizando um experimento simples que procurava reunir em um mesmo corpus os elementos dessa paisagem dispersa que em mim se desenhava. Acendi um cigarro, e me fotografei fumando. Reproduzi algumas vezes essa mesma fotografia e incendiei cópia por cópia. As cinzas do cigarro eu joguei fora, as da imagem eu reuni com a bituca em um mesmo “cinzeiro”, assim, esperava resolver meu “paradoxo” ao mesclar estes dois elementos heterogêneos a partir de transformações operadas em suas materialidades. 

Rodrigo Baroni é doutorando em Antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e membro do Visurb. Contato: rodrigof.baroni@gmail.com

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