Em um sábado ensolarado, caminhando lentamente entre as salas que compõem o interior do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), observava as produções de diversas/es/os artistes em suas múltiplas linguagens, que integravam, à época, o 36º Panorama da Arte Brasileira – intitulado Sertão – sob a curadoria de Júlia Rebouças. Dentre as/es/os 29 artistes e coletivos que participaram desse panorama, me chamou a atenção os trabalhos apresentados pela Vulcanica Pokaropa. Travesti multiartista (circense, performer, artista plástica, formada em fotografia e mestra em teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina – Udesc), Vulcanica expôs a série Desaquenda (2016-2019), uma videoinstalação onde 12 pessoas travestis, transexuais e não-bináries falavam sobre performance, teatro, política, arte e vida; Furya Travesti (2019), com pintura e colagem; e Prosperydady Travesty (2019), com esculturas em técnicas mistas.
Antes de adentrar na Sala de Vidro – espaço do MAM destinado à instalação da artista – percebi algumas indicações importantes: 1) um adesivo na parede advertia que era proibido fotografar aquela área da exposição; 2) a entrada na Sala de Vidro só era permitida para maiores de 18 anos. A entrada de menores de idade era liberada somente acompanhados por pais e/ou responsáveis. Cruzando uma cortina grossa de plástico que desfocava o interior da sala, fui surpreendido por uma monitora do museu que notou uma câmera fotográfica na minha mão: “Você precisa guardar a câmera. É proibido fotografar aqui”. Questionei, então, quais eram os motivos da proibição naquela sala. E ela me disse: “Como você vai notar, tem alguns vídeos aqui nesta parte da exposição que apresentam cenas ou expressões de nudez. E, para realizar esta parte da mostra, foi uma determinação proibir as fotografias dos visitantes por conta do conteúdo. Mas é isso, né? É um reflexo do momento de retrocesso político que estamos vivendo”.
Entre a frase Furya Travesti Contra o Fascismo localizada no centro da sala e algumas faixas com os dizeres: As travestis vão curar essa nação; Respeita as travesti; Cisgeneridade, parem de nos matar!, 4 esculturas penduradas no teto com expressões de guerrilheiras usando ferramentas de ataque (lança, faca, bastão, foice e machado), complementavam, naquela instalação, uma ideia de fúria, de resistências em existências dissidentes, e de combate a uma estrutura social cisgênera e transfóbica. Se, por um lado, o Brasil é um país que mais mata travestis e transexuais do mundo; por outro lado – felizmente – há, cada vez mais, a ocupação de pessoas trans, travestis e não-bináries nos campos da arte e da cultura, criticando e propondo novos olhares aos sistemas institucionais estabelecidos em galerias de arte e em museus.
Nesse sentido, utilizo um trecho da própria Vulcanica Pokaropa presente no catálogo da mostra Sertão:
“Desaquenda é sobre deixar de ser objeto de estudo de pessoas cis[gêneras] e começar a produzir nossos próprios materiais. Esse trabalho [Desaquenda] é necessário, também, para mostrar que estamos fortes no campo da cultura e que a gente vai permanecer. Por mais que um governo ou sistema queira acabar com as nossas vidas, a gente vai permanecer linda e bela, fazendo como a gente sempre fez.”
Quanto a mim, em um movimento de retornar à pergunta-título deste breve relato de experiência, percebi que as guerrilheiras de Vulcanica Pokaropa e as falas/imagens das 12 pessoas travestis, transexuais e não-bináries que apareceram nos vídeos de Desaquenda, ainda ecoam nas minhas contínuas reflexões enquanto sujeito privilegiado – homem, branco, cisgênero e de classe média – e as minhas posições diante desses marcadores sociais da diferença. Apesar do episódio de classificação etária com relação às expressões de nudez (classificação indicativa que também ocorreu com a mostra Histórias da Sexualidade realizada no MASP, em 2017; e não podemos esquecer da censura absurda que a Queermuseu sofreu, também em 2017, no Santander Cultural), o que reverbera, até hoje em minhas memórias da exposição, são as agências políticas atravessadas em todas as partes da instalação; a utilização de um espaço museológico para criticar uma estrutura machista, cisgênera e transfóbica que constitui, também, os museus e as galerias de arte; além de compartilhar – com as produções da mostra e através delas – outras formas de vida, de existências, de corpos e corpas, de resistências, de expressões não-hegemônicas e de novos imaginários artísticos. Quanto a mim, a furya travesti de Vulcanica Pokaropa permanece viva e em chamas – até hoje.
*Rafael Pinheiro é mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo e membro do VISURB. Contato: pinheiro.souza@unifesp.br