1989
Mar de casinhas, madeira ou alvenaria, todas aglomeradas como se tivessem em um grande abraço que não se sabe ao certo o motivo, tampouco quando acabará, ou quando as águas desfarão os laços frágeis de tijolo-prego-cimento-lona. Um mar de gente apinhada como madeira em fogueira de São João, noite de samba rock em baile nostalgia com ingressos esgotados no primeiro dia, fila do posto de saúde antes do horário de trabalho. O ano é 1989, um ano antes de iniciar a década em que a zona sul da maior metrópole do Brasil era sinônimo de violência, política pública não existia na região e as famílias só podiam contar com a solidariedade umas das outras, das associações de bairro ou benevolência de um cristianismo orientado pela Teologia da Libertação.
Ainda adolescente ela tomou a decisão que mudaria o curso de sua trajetória: cuidaria daquela criança independente do que tivesse que enfrentar. Guardou o sonho de sair da casa dos pais tão logo completasse 18 anos, sinônimo de lar e vida próprias, talvez ser modelo, em uma caixinha dessas de lata de biscoito amanteigado que foi colocada no fundo de um guarda-roupa surrado dividido, assim como a beliche, com as irmãs mais novas. Três dias depois de ter se acabado de dançar ao som de um bom black balanço me recebeu em seus jovens braços.
Mar de incertezas, medos, dúvidas. Rios de lágrimas que correram no calar de madrugadas a fio. Mas todo dia era um novo dia para ser melhor, pôr Tim Maia pra tocar intercalado com louvores, estender a roupa esquecida na máquina de lavar, atravessar a cidade para entrar em uma piscina do SESC e se refrescar. “Gosto de te ver ao sol, leãozinho. De te ver entrar no mar”. Mar de sonhos, de luta, de coragem e fé. Toda reunião esteve presente, não perdia uma consulta médica sequer, sempre pude contar com seus aplausos ao final de qualquer uma das milhares de apresentações artísticas que realizei. Barro que deu forma ao que pude me tornar. Água que me tornou sempre permeável às mudanças de curso. “Ah! Se o mundo inteiro me pudesse ouvir. Tenho muito pra contar, dizer que aprendi”.
Conhecida e lembrada por pessoas que meus olhos há muito já perderam de vista, Josefa, Nana, Jô, fez seu caminho sempre em direção ao sol, como aquela flor amarela que se abre e fortalece toda vez que um raio dourado a alcança. Já estendeu muito suas mãos para conhecidos, para pessoas que nunca viu, para aquelas que viraram as costas quando ela precisou. Suas memórias são ativadas em descuidos desses de um dia qualquer, uma música que toca no rádio, uma voz familiar ouvida ao longe há tempos não vista, uma anotação em papel de pão encontrado em meio aos livros, um vestido ganhado de presente que foi repassado para a filha mais nova só para poder ser visto novamente pelos seus olhos cansados. Imagens não são muitas, mas as que tem sempre são um portal para um tempo outro. Choro contido, abraço guardado, palavra não dita.
Que eu possa sempre encostar minha cabeça em seus ombros e seguir com a lanterna na mão a guiar nós duas em meio a memórias, lembranças, caminhos, futuros. Minha lata de biscoito amanteigado está cheia de fotografias nossas para te mostrar, vou tirar debaixo da cama e compartilhar contigo em um dia de sol, você passa o café?
Créditos
Foto de fundo na montagem: acervo Dayane Fernandes
Retrato atual Josefa: Dayane Fernandes
Bordado: Dayane Fernandes
*Dayane Fernandes é mestra em Ciências Sociais pela Unifesp, participa do Grupo de Pesquisas Visuais e Urbanas (VISURB) e do Coletivo Estudos do Corpocidade (Cóccix). Contato: fernandes.dayane@gmail.com
Linda homenagem a quem lhe deu a vida! Parabéns .
Belíssima homenagem a origem da vida.
Parabéns Dayane
onde a trajetória, o amor, o registro e a memória se encontram. ♥️