Das mulheres que encontrei, abracei, amei: Juventude – Por Dayane Fernandes  

Juventude

A adolescência costuma ser um período potente, mas ao mesmo tempo tão difícil de se atravessar. Apesar de na infância não ter sido exatamente a criança que correspondesse ao perfil delimitado para meninas, provavelmente foi como pré-adolescente que passei a lidar com uma sensação de não-pertencimento que nunca mais me deixaria. Talvez por isso se me perguntassem naquela época quais eram meus sonhos eu responderia: conhecer o mundo e fazer faculdade, a ordem não importava muito. Coisas estas que eram desconhecidas para mim, as quais eu não tinha exatamente referência, nunca tinha visto ninguém da minha família viajando por aí, a não ser minha vó com sua vasilha de frango com farinha por dias em um ônibus que a levaria de volta ao brejo paraibano, e dificilmente conseguiria pensar em algum parente que tivesse completado o Ensino Básico. E essa resposta pode parecer ilógica dadas as circunstâncias, mas olhando hoje para essa época havia espaço para minhas ideações. 

Ao contrário de descendentes quatrocentões, ainda hoje não sou capaz de retraçar uma árvore genealógica de minha família, nem materna, ainda menos paterna, mas é possível afirmar que as Fernandes são raízes bastante fortes. Venho de uma linhagem de mulheres que sempre estiveram no campo de batalha contrariando muitas estatísticas. Por conta do chão que elas pavimentaram (e o fazem até hoje) pude ser uma adolescente de periferia que sonhou com outros mundo possíveis. Da infância não tenho muitas lembranças, mas não me esqueço que, ao lado de minha vó e minha mãe, minhas tias deram contorno à minha juventude e, consequentemente, à mulher que sigo me tornando.

Do gosto musical diverso à paixão pelas imagens: tudo tem uma parte delas que, ao contrário de mim, passaram a sonhar já bem mais velhas por terem antes a urgência da fome, da poeira de madeira do cômodo pequeno, de sermos muitas e o dinheiro pouco, de se verem mães jovens, dos estudos terem ficado para depois. Hoje sonham com um terreno onde possam cuidar de suas plantas frutíferas e protetoras, acomodações confortáveis para si e para os seus, condições físicas e mentais que lhes tragam alguma paz possível, se aventuram no mundo dos negócios. Talvez elas não saibam, mas são mais parecidas do que dessemelhantes. 

Ao mesmo tempo que percebo tantas coisas em comum também construí memórias singulares com cada uma. Por Andréia ser a caçula partilhamos parte da juventude entre pagodes, risadas, encontros, cervejas. A casa sempre cheia me lembra sua vontade de dividir a vida com pessoas queridas, estabelecer e reconstruir pontes como a que fizemos quando me levou para comer canjica no seu terreiro de fé. Que esta nunca nos falte. Muitas das viagens que fiz foi com Alexandra sempre registrando de um jeito ou de outro os lugares e pessoas que encontramos pelo caminho. Tantos mares, tantos céus, vinhos, MPB. O esforço em garantir a presença da arte em sua vida, mesmo que pareça escapar aos dedos, me lembra a possibilidade de se fazer o possível dia após dia. Que esta nunca nos falte. Há tanto para vivermos, vamos construir tantas outras memórias, nas nossas diferenças e semelhanças.

O passado costuma ser um tempo tão difícil para o qual voltar, especialmente para Andréia e Alexandra, mas também pode ser um período fértil de reconstrução. Na verdade lá tem barro que pode ter sido ruim de amassar, mas é a mesma matéria que deu sustentação para os lares que fundaram dentro de si, basta construírem novas narrativas sobre o que tenha sido e significado ser uma jovem sem sonhos em um contexto no qual existir no hoje já era uma vitória. Que essa nuvem densa de descaminhos que lhes habita possa chover até o céu ficar límpido novamente, que a arruda ofertada pelo imaginário de sua irmã mais velha possa sempre lhes proteger, que as encruzilhadas pelas quais passaram sejam vistas como abertura de caminhos e não como o fim deles. Que haja futuro para tanto passado.

*Dayane Fernandes é mestra em Ciências Sociais pela Unifesp, participa do Grupo de Pesquisas Visuais e Urbanas (VISURB) e do Coletivo Estudos do Corpocidade (Cóccix). Contato: fernandes.dayane@gmail.com

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