Perrengues pedonais — Por Agostinho “Tito” Barrios

Pode parecer exagero, mas às vezes tenho a impressão de que fizeram as calçadas ladeando as ruas só porque sobrou espaço e não dava para colocar mais uma via… afinal, todo mundo sabe que a preferência é do veículo automotor. Não ter carro é praticamente um estigma social, metrô e ônibus uma sina e andar, a pé, de chinelo? Melhor nem comentar. Em uma cidade que ostenta minhocão, marginal tietê e outras tantas vias expressas, parece pouco provável que alguém em sã consciência irá querer se deslocar entre dois pontos quaisquer caminhando, quanto mais perambular sem destino. O Uber está aí para provar isso.

Uma pena. Apesar de acreditar que o esforço seja válido, a cidade realmente não facilita nossa vida. Sou partidário do “por amor falo mal”, ou seja, não “passo pano” para os (muitos) defeitos dela e entendo que podemos melhorá-la mesmo que pontualmente, com pequenas atitudes, como a conscientização e o exercício da alteridade, algo que tento exemplificar neste breve relato e faço força para que se espalhe e sensibilize mesmo aqueles que compram pão na padaria da esquina, de carro (e olha que nem estava falando de padaria drive thru e com pandemia é melhor fazer o seu próprio pão em casa). 

Basicamente eu ando bastante distraído pelas ruas, sempre atrás de moinhos de vento, mas me esforço para transmitir um ar de seriedade culpando a coitada da dérivé. Essa interessante abordagem do caminhar como parte da vivência urbana, incorporada ao método artístico, é um importante exercício reflexivo e criativo, além de ajudar bastante nas desculpas de qualquer flâneur. O inconveniente é que esse método não se atém, por princípio, aos diversos alertas materiais que, meio que por acaso, ainda persistam reconhecíveis como tais espalhados pelo caminho (ou mesmo a caminhos determinados – quem nunca pegou um “atalho” por um terreno baldio?). 

Em uma andança particularmente arrojada pelo centro de São Paulo, lá pelos idos de 2016, nas proximidades da Vila Itororó, fui sendo levado de grafite em grafite até chegar, sem saber como, em um trecho da ligação Leste-Oeste também conhecido como Viaduto do Glicério. Aqui inexistem avisos para os poucos pedestres incautos – quem seria louco de andar pela calçada irregular sem qualquer proteção entre veículos em alta velocidade e a carne frágil? Para piorar, a calçada simplesmente acaba em uma cerca alta próxima ao fim do viaduto e não existem escadas ou quaisquer meios de se chegar nas diversas pontes ao longo do trajeto ou para atravessar as pistas. Aqui está a crueldade: ser obrigado a voltar e encontrar um caminho alternativo quando tão perto do próximo grafite. Uma interrupção forçada na vivência, acompanhada pela desconexão entre propósito e realização. 

Qual é o sentido de se colocar arte onde não é possível reduzir a velocidade ou mesmo caminhar para vê-la? Não apresentar alternativas para sua visibilidade ou mesmo garantir a segurança de quem se interessa? Enfim, um pouco frustrado e sem vontade de testar minhas habilidades de escalada, encarei pelo lado positivo: como uma oportunidade de fruir em dobro as obras ao meu redor! Com isso em mente, aproveitei para realizar um ensaio analógico: a ideia era simular o ponto de vista do motorista que percorre esse trecho, preocupado em chegar o quanto antes ao seu destino, com vidros fechados e ar-condicionado, isolado em seu próprio mundo. O colorido dos grafites se torna um borrão vivo, os veículos são fantasmas, presos em sua velocidade, e linhas tênues de movimento parecem conectar todos em uma dança ruidosa e improvisada.

essa série é uma obra em andamento que utiliza o conceito de “super panorâmica em câmera de fenda” e cujo processo pode ser visto em mais detalhes no meu blog pessoal https://titobarrios.wordpress.com/2016/03/14/imagem-tempo-e-movimento/

Ali, parado, às margens dos acontecimentos, com a câmera fixa em minhas mãos registrando a passagem do tempo. Sentindo o filme girando rápido e ininterruptamente por trás da lente, em sua vã tentativa de capturar a velocidade do mundo, percebo que naquele lugar, movimento é vida. A foto se firma como memento mori

Agostinho “Tito” Barrios é fotógrafo e pesquisador. Atualmente está cursando Ciências Sociais na UNIFESP, é MA em Comunicação Visual (Fotografia) pela Hertfordshire University, pós-graduado pelo SENAC em Fotografia como Arte Contemporânea e tecnólogo em Fotografia pela FIAM/FAAM. Portfólio: titobarrios.myportfolio.com

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *