Imagens e histórias sobrepostas: fotografias de família e suas memórias — Por Kennedy Valério e Milena Cidrão

“Estamos imersos na profusão sem limite do ver.” – David Le Breton

Neste breve ensaio partimos da observação dos álbuns de família em contato com as “cuidadoras da memória familiar”, para tanto, realizamos dois exercícios, um de cruzamento de duas experiências etnográficas com as fotografias, realizando entrevistas com nossas interlocutoras – a saber, nossas mães. E num segundo momento faremos um exercício visual de sobreposição dessas fotografias selecionadas. Escolhemos fotos de nossas famílias a fim de observar como nossas interlocutoras lidam com suas fotografias, memórias, afetividades e a relação de posse dos álbuns de família são evocadas aqui.

As fotografias utilizadas neste ensaio não são composições de um ensaio fotográfico, tampouco foram produzidas para fins acadêmicos, entretanto, as mesmas são potências que acionam experiências sensoriais quando evocadas por nossas interlocutoras. Compreendemos nossas fotografias como “[…] uma forma de personalidade estendida e, por isso, elas constituem uma soma de relações ao longo do tempo.” (EDWARDS, 2016, p. 181). Álbuns de família não arquivam somente os registros de momentos privilegiados pelo fotógrafo, eles agenciam encontros de imaginação e da memória que se movimentam no tempo-espaço de maneira causal, isto é, os álbuns de fotos de família quando acionados num sentido reflexivo é para nós um índice.

Eva e Neide, além de nossas mães, foram nossas interlocutoras. As fotografias que elas observaram pertencem a elas e, ao mesmo tempo, a nós, na medida em que tínhamos conhecimento sobre a existência dessas fotografias e, uma noção mínima da composição fotográfica que apresentamos às nossas interlocutoras. Reconhecemos que nossa aproximação com nossas respectivas interlocutoras pode influenciar nas respostas obtidas e na forma como é conduzida toda a entrevista e no processo de escrita deste ensaio, porém temos como premissa a noção de que o  objeto de pesquisa estabelecido neste ensaio é construído a partir dessa relação de parentesco aproximada, e esse fator não é enxergado como um elemento desagregador ou menos legítimo, pois, de acordo com Miriam Moreira Leite “Os limites de espaço e tempo social e a ordenação simbólica do mundo permitem conhecer o significado do contexto imediato das imagens fotográficas, que são produzidas através de um ritual ou por condensações rituais do universo examinado”. (1993, p. 159).

Propomos às nossas interlocutoras uma breve entrevista acerca das fotografias de seus respectivos álbuns de família, as indagações e reflexões se deram acerca da memória, imaginação e afetos. Vamos às histórias.

Neide ao ter contato com a primeira fotografia exibida, busca na imagem descreve-la e trazer a memória de maneira geral o que estava se passando no momento dizendo,“Olha, essa aqui é a vó ‘oia’, que tamanho que a vó… Ela foi fazer o batizado, foi batizar esse menino aqui que nasceu prematuro, aí fizeram promessa que se ele salvasse eles iam levar ele na Aparecida, iam batizar lá. Daí ele nasceu, ficou internado, foi logo quando a gente veio pra São Paulo, a gente tava naquela casinha mixucura, e aí ele salvou, ficou bonitinho. Aí..[apontando para as pessoas nas fotos] o Vô, a Vó, a mãe dele, aqui é o tio, irmão da mãe, aqui é a Cida e o Neu… acho que é a Cida e o Neu. Ó a cara do Neu! [risadas].”

Ao ser indagada sobre o que sentia quando via essa foto, afirma, “Ah… feliz, porque… a gente pode ajudar né a tia lá, tão carente que ela tava, só tinha recurso aqui em São Paulo naquela época, se ela não tivesse vindo pra São Paulo corria risco de ela perder o neném e ela morrer também, aí ela veio pra cá, ela ficou… acho que uns três meses lá em casa, foi se tratando lá no ‘Hospital das Clínica’. E aí deu certo, nasceu o neném tudo…”

Nossa outra interlocutora (e mãe), Eva, entra em contato com suas fotografias evocando as lembranças das festas de final de ano em sua cidade natal,“Isso aqui é  fim de ano na casa da Vó, [procurando na fotografia a datação do registro], tava o pai, tio Zeca, tia Fátima que não faz parte mais,   já faleceu, mas que era uma pessoa muito feliz, trazia muita felicidade pra toda a família, trazia alegria, muito descontraída… O importante disso tudo é que eles se davam muito bem, era um tempo em que a família vivia em muita união… Tia Fátima com um copo de cervejinha na mão, Tio Zeca [referindo-se ao copo de cerveja na mão do tio Zeca], o Vô [que no caso é  pai da Eva e Avô do Kennedy]. Isso é lá no quintal onde a gente morava, eu morava lá nessa época, a vó morava na casa da frente e a gente morava na casa do fundo. Então todos os anos as festas eram feitas lá, e todas as famílias, tio Zeca, tia Cida, família da tia Fátima, ia pro Rebouças [bairro da cidade Lins-SP] e a gente comemorava o fim de ano com muita alegria e muita brincadeira. “Quando interpelada com a pergunta acerca do que ela sente quando via essa imagem, ela se mantém em silêncio por alguns segundos e com a voz embargada diz, “Ah, sinto muito carinho por eles, muito amor, pelo tio Zeca, tia Fátima, pelo pai. Tipo assim, era exemplo de família, exemplo de tio, de pai, de tia… Tia Fátima, por onde eu ia ela me carregava, ela me levava com ela, e sempre que saía, ela pedia pro meu pai pra poder me levar junto, aí o pai me deixava sair só com a tia Fátima”.

Nossas interlocutoras-mães, nos trazem para suas falas a cada comentário realizado e a cada olhar trocado, expressões como “o vô”, “o tio”, “o pai”, entre outras, evidenciam a relação de parentesco existente entre nós e nossas interlocutoras. Há uma linha tênue sobre os limites e possibilidades deste exercício que estamos propondo. Cruzar as histórias de nossas próprias famílias, tendo como interlocutoras nossas próprias mães e, fazer uso da técnica de sobreposição das fotografias, é tocar nos “códigos” etnográficos e fotográficos até que os mesmos confessem novas possibilidades semânticas. De acordo com Miriam Moreira Leite, “Os retratos de família estão fundamentalmente ligados aos ritos de passagem – aqueles que marcam uma mudança de situação ou troca de categoria social […] São registros de momentos sacralizados pela alteração do tempo normal e repetitivo” (1993, p. 159).

Dessa forma, se faz importante considerar que nossa presença não é só evocada enquanto entrevistamos ou escrevemos este ensaio, as memórias de nossos familiares que fazem parte de nossas experiências foram acionadas por nossas interlocutoras reverberando em nós enquanto etnógrafos e filhos. As fotografias e o que foi dito sobre elas, permeiam nossa experiência enquanto filhos de nossas interlocutoras. Dentre as falas de nossas interlocutoras, faz-se importante salientar dois movimentos feitos por elas, 1) o de enxergar nas fotografias pessoas que não foram enquadradas nos registros fotográficos e 2) E o de pensar o futuro a partir de pessoas que já faleceram.

Neide e Eva partilham, com algumas diferenças, olhares, silêncios e formas de habitar as fotografias. Passado e futuro são acionados pela imaginação de ambos. Neide, ao entrar em contato com uma das fotos, diz “Poxa vida, é o vô, oh. Tinha acabado de chegar do serviço com esse barrigão. […] Triste porque não tem mais o vô… O Godo nessa situação que ele tá. O Jair na situação que ele tá, o que ele fez.”.

Eva nos diz que nunca teve câmera fotográfica e que pedia emprestado ao cunhado. Perguntamos a ela se houve algum momento que ela gostaria de ter fotografado e por algum motivo, ela não fotografou. Eva diz que “Ah, vários momentos né, que a gente queria ter fotografado, mesmo porque como a gente não tinha câmera, então não era sempre que a gente podia registrar esses momentos, né…, mas, os que a gente conseguiu fotografar, a gente fotografou. E outros ficam na memória, da gente lembrar de casos de situações que a gente viveu, né. Então fica apenas na memória… é muito bom a gente ter fotos pra que a gente possa voltar ao passado e falar “poxa vida, né… nesse momento aconteceu isso, nesse momento eu fui feliz” é muito bom. O que conseguimos fotografar está relatado em fotos. […] Depois que a Vó faleceu, o que mantinha a família, não que a família seja desunida, não é isso. Mas o que mantinha a gente todo ano reunido no mesmo lugar era a Vó, e depois que ela faleceu cada um tomou um rumo, cada um foi viver a sal festa com sua família e ninguém quis saber de ficar juntos. […] Então, eu acho que depois do falecimento da Vó, deu uma esfriada. Se a gente conseguisse reunir todo mundo novamente, ia ser muito bom.”.Para Andrea Barbosa, “A imagem é um índice do real, mas também é a marca de um olhar possível, de um recorte, de uma escolha alimentada pelo imaginário que é uma criação individual e coletiva.” (2012, p, 217). Eva e Neide fazem emergir de suas imaginações as memórias que habitam nas fotografias. Para Neide, o passado é condicionado ao presente das pessoas representadas nas imagens, ela reflete sobre o estado de saúde de Godo e Jair e afirma estar triste porque “não tem mais o Vô”. Se na experiência de Neide, a fotografia traz à memória uma relação entre passado e presente, para Eva ela se dá, de uma forma um pouco diferente Observando as fotografias, Eva diz coisas como “ficar na memória”, “voltar ao passado”, ou seja, essas expressões compõem em sua memória um “momento ideal”. O falecimento de sua avó é uma chave para que essa memória do passado componha um imaginário futuro, Eva “enxerga” sua avó na imagem ainda que ela não apareça em nenhuma das fotografias apresentadas, em outras palavras, a memória evocada a partir da relação da Eva com as fotografias fez com que a presença de sua avó estivesse presente num futuro (ideal) imaginado.

A possibilidade de lacunas movimenta a imaginação, e a potência das fotografias e as memórias do passado que surgiram, faz com que a imaginação possa acessar o futuro. De acordo com Didi-Huberman “E é justamente por que as imagens não estão “no presente” que são capazes de tornar visíveis as relações de tempo mais complexas que incumbem a memória da história.” (2012, p. 213).

O caminho percorrido neste ensaio, nos evidencia que as imagens e as palavras não são descoladas no tempo e no espaço. As memórias não são ingênuas e a atemporalidade evocada existe pelo fato de que as imagens não são estáticas. Recorremos as sobreposições das fotografias como um exercício que não é só estético, mas também metodológico, pois ele está ligado ao cruzamento das histórias, ou seja, curvamos as imagens às palavras e, sobrepomos as palavras sobre as fotos. Neste ensaio propomos a sobreposição das fotografias enquanto montagem,

Porque [a montagem] não está orientada simplesmente, a montagem escapa às teleologias, torna visíveis as sobrevivências, os anacronismos, os encontros de temporalidades contraditórias que afetam cada objeto, cada acontecimento, cada pessoa, cada gesto” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 212).

E as memórias que surgem foram entendidas por nós, na mesma chave que Miriam Moreira Leite quando ela afirma que “O processo de reconhecer a imagem (interior ou gráfica) apoia-se na memória, enquanto a rememoração implica numa condição do saber e numa esquematização do que é absorvido do mundo exterior” (1998, p. 10). Eva e Neide se mostraram abertas frente às suas próprias fotografias, falaram sobre elas, imaginaram para aquém e para além delas e elencando as memórias que dali apareciam. O que as fotografias não confessavam, as falas de nossas interlocutoras confessaram, a presença de quem faltava nas imagens foi preenchida pela memória de Eva, que pode refletir sobre o futuro enquanto uma “ideação”. Para Neide, sua imaginação trouxe à memória afetividades, rupturas, silêncios, o presente lhe aparece enquanto memória acionada a partir do registro fotográfico.  O passado, presente e o futuro, curvam-se às memórias e pululam sobre os afetos de Neide e Eva, mesmo que com especificidades, as histórias podem ser cruzadas intersubjetivamente e as fotografias sobrepostas confessaram outras possibilidades de lidar com as próprias vivências de nossas interlocutoras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Andrea. São Paulo cidade azul: ensaios sobre as imagens da cidade no cinema paulista dos anos 1980. São Paulo: Alameda, 2012.

BARBOSA. Andrea. Fotografia, narrativa e experiência. In: Barbosa, Andrea, Cunha, Edgar Teodoro, Hikiji, Rose Satiko Gitirana, Novaes, Sylvia Caiuby. A Experiência da Imagem na Etnografia. São Paulo: Terceiro Nome, 2016. p.191-204.

CALDEIRA, Sofia. As potencialidades do estudo da imagem fotográfica na antropologia visual. Vista, n.1, p. 165-180, 2017.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. PÓS: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG, p. 204-219, nov. 2012.

LE BRETON, David. Antropologia dos Sentidos. Rio de Janeiro: Vozes, 2016. LEITE, Miriam, Moreira L. Imagem e memória. Revista Resgate, n. 8, p. 9-16, 1998.

LEITE, Miriam Moreira L. Retratos de Família: Leitura da fotografia histórica. São Paulo: Edusp, 1993.

MACDOUGALL, David. Significado e Ser In: BARBOSA, Andrea.; CUNHA, Edgar Teodoro.; HIKIJI, Rose Satiko G. (Orgs.). Imagem-Conhecimento: Antropologia, cinema e outros diálogos. Campinas, SP: Papirus, 2009.

1 thought on “Imagens e histórias sobrepostas: fotografias de família e suas memórias — Por Kennedy Valério e Milena Cidrão

  1. Flávia says:

    Fotografia, uma forma de congelar o tempo e voltar a ele, deixando registrado não só na memória alguns momentos que tão logo nos deixarão com saudades.

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