Sobre aquele muro — Por Bárbara Côrtes

Os encontros verticaleiros no Escadão Marielle Franco, que passamos a realizar toda quarta-feira à noite, começaram inda antes de seu batismo em homenagem à socióloga, militante e vereadora assassinada em 2018, cuja memória se tornou símbolo de resistência à ascensão do ódio e da brutalidade ao poder público no Brasil e no mundo, nos últimos anos.

A nomeação da escadaria veio da ação de um coletivo que faz intervenções nos muros da cidade como forma – imagem! – de manifestação sobre pautas políticas em voga. Como o escadão tem pelo menos dois muros visíveis na distância entre a base – na famosa Rua Cardeal Arcoverde – e o topo – fim da Rua Cristiano Viana -, foi particularmente em um deles que a intervenção se fez mais representativa: o rosto de Marielle estampado em fotografia, dizeres de luta e outras ilustrações preenchiam o espaço.

Quando o vimos, ficamos inspiradas e comovidas com o feito. Reconhecemos na imagem de Marielle uma referência de difusão necessária, da qual tantas vezes participamos nos discursos, nas mobilizações e outras práticas pela cidade. O que não percebemos de pronto, no entanto, foi o acontecimento que isso significava sobre aquele muro.

O que até então era um “pórtico”, nos termos de José Magnani (1992), para os passantes em geral e os habitantes das redondezas – e que nós, “muristas da Cardeal”, acreditávamos usar como ponto de visita, de ocupação e de novos usos -, passava a ser, de repente, um monumento. Nos noticiários e nas redes sociais, aqui e ali, frequentadores da Vila Madalena que até então desconheciam o local passavam a proclamá-lo, como espécie de propriedade da cidade, uma propriedade a partir do instante em que passava a ser dotada de sentido, isto é, de uma função de interesse coletivo.

Eis a perspectiva de novo. Ela e seu caráter prismático, quase irônico na multiplicidade de complexas camadas – a despeito de que tanto se insista, brutalmente, a tentar reduzi-la a isso-ou-aquilo.

Foi então que, de repente, o hábito de pendurarmo-nos no muro, “no escadão”, passava a ser um potencial confronto à sua nova cara, literalmente. 

A “ficha” caiu quando algumas de nós nos fotografávamos, felizes da vida, penduradas no muro de sempre, que agora contava com mais uma boa razão para nos convidar a uma relação de corpo: pendurar não agride, habita – diz o jargão verticaleiro. No entanto, a fotografia aí serviu, de pronto, para a vista atenta aos códigos e dialetos que construímos sem declarar. Ao vermos nossos pés na testa de Marielle, o muro não era mais muro, era gente, e entendemos que gente não é lugar de pendurar. As fotos, então, foram para a lixeira, e sem palavras decidiu-se apenas praticar sobre um segundo muro – ainda assim, sobre o nome grafado da mesma Marielle. 

Mas com o nome foi diferente. Será por que nome não é tão cara – e, então, não é tão gente?

Para mim, parece um pouco de uma outra coisa também. 

Grafitado, pixado ou coisa assim não-esteticamente-sagrada como um retrato, até mesmo um nome monumental se acolhe facilmente como rua. Não gente, rua. Mas rua como corpo comum. Uma rua na qual pôr os pés não agride, mas estabelece os passos e espaços de uma relação corporal presumida, íntima, bem-vinda. 

Evidente ou não a disputa de sentidos, tateio o muro como um lar para quem quiser ocupá-lo.

Mas esse é apenas o meu ponto de visita.

Referências

MAGNANI, José G. C. “Da Periferia ao Centro: trajetórias de pesquisa em antropologia urbana”. Terceiro Nome. 1992.

Fotografia

[1] Acervo pessoal. Thalia Ribeiro e eu

[2] Uol, Portal Aprendiz. Disponível em: https://portal.aprendiz.uol.com.br/2019/03/14/historia-da-escadaria-marielle-franco-em-sao-paulo/ . Acesso em 05 set. de 2012.

[3, 4 e 5] Acervo Muristas da Cardeal

[6] Acervo pessoal. Fê Freitas

Bárbara Côrtes é mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP – 2017), participa do Visurb desde 2020.

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