Par de espelhos paralelos — Por Ravena Sena Maia

Existem momentos que o encontro do passado com o futuro se torna evidente, são momentos singulares na vida que, de onde estamos, podemos perceber as dobras do passado se sobrepondo ao devir. Vivi este momento quando, ao completar 31 anos de idade, descobri que me encontrava exatamente com a metade da idade de minha mãe, neste caso 62 anos. Durante todo aquele ano, senti conjugar o passado, ao me encontrar com a exata idade que minha mãe tinha no dia do meu nascimento, ao mesmo tempo em que via, nela, meus 31 anos a mais de futuro a percorrer. Percebi-me neste momento singular, nesta virada, neste entre-lugar das conjunções de dois tempos, eu, sendo passado e ela, sendo futuro.

A cidade em que vivo, Salvador, de certa forma também tem esse fascínio inexplicável, expressa essa particularidade. Salvador habita este entre-lugar, o instante da virada com a presença de uma ancestralidade e a perpetuação das suas gerações. Velhos e crianças, compartilhando ensinamentos em dobras que expressam ao mesmo tempo permanência passada e incertezas futuras. 

Este pequeno prólogo das minhas experiências pessoais manifesta-se em reflexões que tenho feito sobre a fotografia. São metáforas próprias, tecidas pela vontade de fazer das imagens o meu pensar, o meu caminhar pelo mundo, modos de entender meu ser e minhas teorias. Tudo isto porque penso que a fotografia chegou neste momento singular, no momento de uma virada que condensa, ao mesmo tempo, uma gênese analógica e uma possibilidade do devir rede. Encontrar esta imagem de Layane e Lorrana, que apresenta este texto, precisamente, arrebatou-me a este instante do entre-lugar um dia vivido com minha mãe, acentuando meus questionamentos sobre as práticas atuais com as imagens.

Estamos neste momento, imbricados em olhar a fotografia neste par de espelhos paralelos que reflete, um para o outro, modos de entender a fotografia desde sua invenção até as últimas inovações tecnológicas com a imagem. Multiplicando os reflexos infinitamente, o passado fotográfico torna-se tão presente quanto as mais diversas possibilidades que o futuro nos oferece. É nessa profundidade temporal que as teorias e pensamentos fotográficos têm tentado encontrar seu lugar e ancorar respostas sobre a imagem. Isto é evidente ao perceber que grande parte dos cursos, oficinas, aulas sobre fotografia começam com um grande apanhado sobre sua invenção e seu legado histórico-tecnológico, ao mesmo tempo que, as vivências cotidianas no universo das selfies, shares e likes convocam com intensidade uma consciência aos artifícios da pose, enquadramentos e construção da imagem e, principalmente, um apelo comunicacional sem precedentes. 

A intenção deste questionamento é menos medir qual destes pólos é o mais imprescindível, o que considero impossível, e sim perceber neles suas relações, os vestígios, subversões e sobreposições que persistem e reinventam modos de ser fotográficos.

O jogo dos dispositivos nos retratos, criados por Layane e Lorrana, carrega estes dois polos de pensamentos e práticas sobre a fotografia. Por um lado, a câmera fotográfica que invoca um conjunto de argumentos acerca da verdade, objetividade e transparências da imagem e, ao mesmo tempo, um conjunto de práticas onde o domínio da técnica era fundamental ao fotógrafo, ou seja, aprender e “capturar” fotografias necessariamente pressupõe dominar o “aparelho”. É evidente que os atalhos da história (um grandioso, em se tratando da Kodak) tentaram escapar dessa prisão da técnica ao inventar possibilidades de [ama]dores apenas clicarem e o simples aparelho “fazer o resto”. Ainda assim, todo esse conjunto reflete um senso comum sobre a fotografia: uma prática de olhar o mundo e o outro com distanciamento, conectada às noções de revelação, de representação do passado, de recordação, de uma verdade da memória, do documento…

Seu outro reflexo demarca a conjunção dos dispositivos fotográficos com outros dispositivos comunicacionais, na figura do smartphone, que torna a prática fotográfica vinculada a uma prática de circulação pelas conexões em redes, além da convergência de manipulações infinitas, facilitadas pelo digital. Este duplo digital/virtual retorce os pressupostos fotográficos anteriores e propõe um alargamento das relações e usos da fotografia.

Entendo que este seja o tempo de problematizar. Estamos no momento das sobreposições, uma era particular onde coabitam as duas gerações destes pólos fotográficos: uma que conviveu com a fotografia analógica/digital produzida pelas câmeras fotográficas; e outra de jovens que já nasceram na junção tecnológica proposta pelas conexões em redes e dos smartphones. Como lidamos com a imagem hoje? Como a geração “do analógico” tem adentrado no universo das selfies, enfrentando as possibilidades de outras construções e relações com a imagem? Quais tempos que a fotografia atualmente carrega? Ao olhar uma imagem, que relações estabelecemos? 

Ainda estamos neste momento de virada, com uma geração que aprendeu a conviver com o analógico e têm aprendido as rotinas e emergências do mundo digital/virtual. O estabelecimento dessas práticas, durações e produções que operam passados, e/ou reinventam possibilidades futuras, ao meu entender, configuram um momento precioso para um campo de teoria fotográfica e por fim compreender o que se mantém desta história e o que se reinventa no porvir. O tempo é agora! Refletir sobre este momento é o meu lugar de partida que venho tentando pôr em verbo nas minhas pesquisas. Dobrar modos, práticas e usos, que expressam os embates e as sobreposições destes tempos. Olhar para esses reflexos infinitos passados, entender quais relações, usos, práticas “analógicas” da fotografia permanecem, e paralelamente, no outro extremo do espelho, perceber as infinidades de futuros possíveis que o universo das redes virtuais, dos smartphones propõem com experiências diversas para a fotografia. Este é o entre-lugar, a nuvem de imagens compartilhadas, multiplicadas, retorcidas que nos escapam aos dedos.

Layane e Lorrana. 2019. Foto realizada no Alto da Bela Vista  – Ilha de Itaparica – Bahia durante oficina de fotografia ministrada por Andréa D’Amato.

Ravena Sena Maia é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporânea da Universidade Federal da Bahia ,com pesquisa voltada para a fotografia e sua performatividade. É fotógrafa e mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense com estudos voltados às estéticas da fotografia contemporânea. Possui graduação em Comunicação Social Habilitação em Midialogia pela Universidade Estadual de Campinas. Foi docente substituta de graduação na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia e professora de fotografia e videodança na Escola de Dança do Estado da Bahia.

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