Memória, Imaginação e magia — Por Marcel Cabral Couto

Para minha avuela Genoveva

Estes escritos não pretendem narrar ou explicar todas as imagens que aparecerão a seguir. É antes um compartilhar de fotografias-memória de minha família e um convite para a imaginação. Estas fotografias ficavam sempre guardadas numa caixa inalcançável, minha avó não permitia mexer nelas. Hoje elas são herança de família e estão momentaneamente comigo. Remontei-as provisoriamente num caderno afetivo de colagens pensando na imagem dos vaga-lumes de Didi-Huberman¹ , são lampejos que tocaram o real e que agora  poderão ser re-animadas pelos nossos olhares. Como Já disse Etienne Samain², as imagens só podem ser vividas, apreciadas e criadas por corpos vivos, e a esta vida das imagens que convido os corpos que irão ler e olhar as páginas a seguir.

Minha família sempre foi religiosa, muito católica, de ir à missa e nas festas da igreja. As crianças eram batizadas, faziam catecismo e crisma e era esperado crescer, casar e ter filhos. Eu não crismei e não pretendo casar mas, ter filhos quem sabe um dia. Parte das fotografias que eu herdei de minha avó mostram estes rituais. Contudo também éramos/somos pagãos, politeístas, umbandistas e kardecistas. Minha mãe fazia simpatias para me curar da bronquite, minha avó Lazinha, mãe da minha mãe, benzia, fazia rezas, chás e simpatias. Certo dia minha família resolveu ir a uma comunidade de religiosidade espírita, para que eu e meus primos, Vinicius e Erica, filhos da tia Vilma, nos curarmos da bronquite. Era uma cidade, provavelmente mineira, pelo que lembro, e que girava em torno de uma figura religiosa espírita ou umbandista, a pessoa que faria minha cirurgia espiritual. Lembro que este ser, ora masculino ora feminino, passou uma faca no meu peito, jogou fumaça em mim e disse que eu tinha um anjo da guarda.

Ao voltar para São Paulo minha avó Genoveva, estava catolicamente inquieta e nervosa, querendo saber de cada detalhe daquela heresia. Contei tudo nos mínimos detalhes, como fiz tantas vezes até a sua morte este ano. No fim da narrativa eu contei que, aquela/le Ser havia me dito que eu tinha um anjo da guarda que era alto, calvo, bonito, era da minha família e já tinha morrido. Ouvindo isso minha avó me levou ao quarto e abriu o antigo e belo, guarda-roupa que sempre me encantou. De dentro do guarda-roupa tirou uma caixa e de lá sacou uma foto do seu casamento. O jovem homem ao lado dela era meu anjo da guarda – João Moreira Couto – meu avô. O anjo ganhou uma imagem e entrou no meu imaginário e nos meus sonhos.

Certa vez, com 15 anos, acordei de manhã para ir pra escola e vi um homem perto da saída do meu quarto. Eu gritei e minha mãe veio até mim. Eu disse – “tinha um homem aqui, era meu avô”. Minha mãe diz até hoje que foi um sonho, mas eu me lembro de estar sentado na cama, naquele momento deganhar força para aceitar que é preciso acordar. Eu estava sentado e vi lá na parede meu avô.Delírio, ilusão, sonho? De todo modo, a imagem que vi ali era a do homem cuja foto tinha visto aos 10 anos de idade. Anos depois tentei reaver essa caixa mas,  apenas uma vez minha avó permitiu, vi várias fotos, várias do meu avô. Ele morreu com 33 anos. Foi assim, com as imagens, que fui descobrindo que meus olhos e os do meu pai se parecem com o dele e que o rosto dovô lembra o do Tio Ronaldo. Foram essas fotografias que me fizeram confirmar que ele fundou dois times de futebol, o Tossan e o Camarguense e participava dos clubes e associações de bairro nos anos 1950 e 1960. Como meu tio Alemão e meu pai, ele morreu de infarto fulminante depois de voltar do campo de futebol do Tossan. Este campo existe até hoje no Itaim Paulista As vezes vou lá porque tem uma vista do bairro muito bonita e que me acalma.

Imagens têm qualquer coisa de encantado mesmo. O anjo invisível fez-se imagem. Não sabia que tinha um anjo da guarda e que este tem a imagem do meu avô. Quando penso em regime de visibilidade penso nisso e acho que consigo entender alguma coisa, entender que para algumas coisas ou pessoas existirem é preciso olhar para alguma imagem dela e, assim, ela passa a habitar em nosso corpo/mente.

Esse ano, uma semana antes de morrer, minha avó me entregou todas as fotografias da família e parte de suas últimas memórias orais. Agora há uma missão a cumprir. Pretendo (re)montar as imagens em álbuns com as memórias orais da família e fazer circular este acervo para re-criar novas imaginações de passado entre nós.

¹ Huberman, Didi. A Sobrevivência dos vagalumes. Belo Horizonte. UFMG, 2011.
²  Samain. Etienne. Como pensam as imagens. Campinas. Ed Unicamp, 2012.

* Marcel Cabral Couto é mestre em Antropologia Visual no departamento de Ciências Sociais da UNIFESP de Guarulhos. Estudou Arte e Sociedade na América Latina pela cátedra Unesco do Memorial da América Latina. Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,.Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em arte, estética, ética e filosofia política. E-mail: marcel.c.couto@gmail.com 

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