Das mulheres que encontrei abracei, amei: Reencontro – Por Dayane Fernandes

Reencontro

Minha relação com as imagens iniciou dentro dos quintais pelos quais minha vó-mãe-tias passaram, pode-se dizer que é herança familiar, e se tornou alimento compartilhado ao longo de minha jornada já adulta com a família que fui escolhendo e sendo escolhida. Se na infância e adolescência uma tia querida fazia questão de registrar diferentes momentos de nós, especialmente das primas e primos, segunda geração nascida em São Paulo, eu sendo uma das retratadas, em minha adultez passei a escolher as imagens como meio de reflexão, bem como de expressão, me tornando eu aquela quem elabora os registros. Revirando caixas e gavetas (reais ou simbólicas) de minha família de sangue e a afetiva, tenho ficado cada vez mais com vontade de saber sobre as pessoas anônimas que fazem esses registros há décadas em casas comuns como a minha e como isso mobiliza pessoas como eu a (re)construir memórias, histórias, esquecimentos, enfim: tecer narrativas sobre nós mesmas.

Quando iniciei meu caminhar nas Ciências Sociais, em 2012, não achava que neste universo caberia minha paixão pelas imagens, ao menos não quando se tratava de compreender e enfrentar as desigualdades tão profundas do nosso país, principal motivo que me fez escolher o curso, ledo engano. Por sorte (e talvez persistência inconsciente) fui sendo levada por caminhos nunca imaginados até chegar em 2017 com um projeto de mestrado, que tinha como plano de fundo essas mesmas desigualdades, a ser desenvolvido na intersecção entre Antropologia Urbana e Antropologia Visual, mesmo sem saber o que exatamente isso poderia significar. E, confesso, tinha chances de desandar, mas os encontros e trocas que aconteceram especialmente neste período, fizeram com que eu e as imagens nos reencontrássemos e esta relação se provasse necessária e urgente.

Nessa caminhada tive a chance de ser orientada por Andréa Barbosa, cuja primeira lembrança sobre mim diz respeito ao que ela percebia como um incômodo meu para com o mundo, movida por uma energia de propor novas relações com as pessoas, com os processos, com o próprio mundo que eu enxergava em ruínas. Engraçado ouvir esse comentário de pessoa tão importante no meu processo de reconciliação com a academia, pois (talvez ela nem saiba) que foi no encontro com sua generosidade que pude entender que a produção de conhecimento pode e deve ser também um espaço afetivo de troca, construído com e não sobre nossos interlocutores. Que pesquisa é um exercício de autonomia que, embora tenha um lado autoral muito importante, não se faz sozinha, mas sim no encontro com o tanto de gente que nos circunda e nos provoca, ou seja, se dá na interlocução, no quanto nos permitimos afetar e ser afetadas. Leitura bonita de danar essa. Diálogo. Troca. Com ela dividi, além das imagens, muitas angústias, choros, confusões dias a fio. Compartilhamos uma com a outra novas leituras, novos jeitos de enxergar o mundo, novas lentes para olhar para nossas próprias condições, refletindo sobre nossos fazeres. O imponderável que só é possível descobrir ao longo da construção de cada relação.

Nesse percurso de reencontro com a fotografia também me conectei com mulheres incríveis que igualmente produzem e pensam as imagens a partir das relações, do cotidiano, das narrativas relegadas às margens, não apenas como forma de expressar subjetividades, mas também de trazer à superfície questões sociais mais gerais. Victória Sales e Janaína Carvalho, ambas artistas visuais que usam a fotografia como uma das linguagens possíveis, integram esse grupo. Juntas, fomos durante um tempo “Coletivo Sem Nome”, nos encontramos em um momento no qual cada uma, a sua maneira, estava ressignificando as imagens fotográficas na sua relação com o mundo. Que encontro potente!

Para Vic, a fotografia tem sido, dentre outras coisas, uma ferramenta de ficcionar memórias, como um condutor de recordações possíveis, de pessoas-lugares-amores-histórias que não aconteceram, mas poderiam ter existido, deslembranças que passam a ter forma-volume-preenchimento em um lugar onde o afeto, o íntimo, o familiar se fazem presentes. É um movimento para dentro, mas também é o outro. É para fora, mas também sobre permitir que esse outro a toque. Diálogo. Troca. Mesmo entendendo a importância de planos gerais, sua obsessão por uma 50mm faz com que os detalhes lhe chamem mais atenção. Os fragmentos, que talvez para muitas pessoas não digam nada, para ela pulsam relatos, contam histórias. Com ela dividi, além das imagens, o mesmo coração por dias a fio. Acho sempre graça no seu jeito de nunca desistir do afeto. Aprendi com ela que fotografias não são apenas lentes e enquadramentos, que é também sobre cuidado. Que é preciso abrir espaço para memórias existirem, renascerem, se transformarem, serem esquecidas, ressignificadas. Aprendi que olhar se aprende olhando e que neste movimento é preciso se demorar, sem perder a malandragem de quem tem urgência de vida. Vai com medo mesmo.

Mulher areia-mar, Jana é curiosa, inquieta, e por não conseguir interagir facilmente encontrou na fotografia um meio de (literalmente) chegar nas coisas-pessoas-lugares que a interessavam, ao mesmo tempo que de alguma maneira permanecia blindada pela capa (in)visível do equipamento fotográfico. Se quer fotografar uma laranja, vai à feira e se deixa afetar por todo o caminho até chegar em seu objeto-alvo, o percurso faz parte da narrativa. cidade-cotidiano-processo-montagem-afeto-reconstrução. Diálogo. Troca. Ela prefere me mostrar o azul do céu daquele dia que foi à feira para fotografar a famosa laranja e me perguntar que azul eu enxergo, qual sua textura, sua profundidade, sua forma-volume-preenchimento, do que me mostrar a laranja estaticamente capturada. Com ela dividi, além das imagens, o mesmo lar por dias a fio. Achei sempre engraçada sua inconformidade com o fato de pessoas não acharem estranho morarem umas sobre as outras em prédios que parecem querer alcançar as nuvens, mesmo estando tão fincados no chão. Aprendi com ela que toda vez que o mar vai até a areia e volta, nos milhares de anos que esse movimento aconteceu, sempre foi e sempre será único, assim como as imagens que sempre serão únicas, independente de sua reprodução, se em grande ou pequena escala, são únicas, posto que o afeto e a afetação que engendram dependem das pessoas, das situações, do momento. Memórias são coisas que nunca são iguais para todo mundo, o tempo todo.

*Dayane Fernandes é mestra em Ciências Sociais pela Unifesp, participa do Grupo de Pesquisas Visuais e Urbanas (VISURB) e do Coletivo Estudos do Corpocidade (Cóccix). Contato: fernandes.dayane@gmail.com

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *